José Eduardo Carvalho

Archive for junho \16\+03:00 2009|Monthly archive page

quatro

In JoséEduardoCarvalho on 16/06/2009 at 11:28 PM
Por Vik Muniz, artista plástico brasileiro, que, entre outras coisas, já produziu imagens com sucatas.

Por Vik Muniz, artista plástico brasileiro, que, entre outras coisas, já produziu imagens com sucatas.

Talvez estivesse confuso. A arte de sonhar tornou-se a capacidade de deslocar o corpo – na realidade, o espírito – para fazer passeios em qualquer lugar que se deseja ir, disse o velho. E talvez você faça isso sem sentir, instintivamente, completou ele.  De fato, não podia negar que minhas experiências me deixavam em estados inigualáveis de bem-estar, exceto quando me via horas e horas a fio, sonhando, em estados naturais de vigília. Eu tinha a chave para muitos mistérios, revelou-me o velho.

– Enquanto dorme, você age como imortal, sendo assim, você acha que tem todo o tempo do planeta dentro de si, pontuou o analista.

Eu me sentia péssimo naquela conversa. Tentava desprezar a estupidez humana que acreditava fazer parte de mim. O papo beirava o delírio, era tudo muito surreal, por assim dizer.  Verdadeiro sufoco iniciar diálogos, ou melhor, só fazia escutá-lo. Entretanto, tudo que ele me dizia, achava, no mínimo, intrigante. Seu rosto, com traços cansados e um pouco sujo, revelava um brilho infantil, mas tinha olhos cor de mel , com pegada oriental, e usava unhas longas e afiadas, como se tocasse violão ou fosse um velho monge chinês.  Tarde da noite, acordei com a sensação de que não estava sozinho no quarto; com certeza, havia alguém. Consegui ver a silhueta do rosto através da cortina transparente que separava o quarto do banheiro, graças à intensidade da luz da lua. De nada adiantaria eu fingir que não estava vendo, acendi a luz e uma linda menina, de cabelo loiro encaracolado, me observava, com a cabeça em cima dos braços debruçados na janela.

três

In JoséEduardoCarvalho on 15/06/2009 at 1:47 AM
Sala Vermelha, do desenhista e pintor francês, Henri Matisse.

Sala Vermelha, do desenhista e pintor francês, Henri Matisse.

Sentia necessidade de ouvir cuidadosamente cada palavra que ele me dizia e para não correr o risco de perder qualquer detalhe, convidava-o para me acompanhar a outro local. O café que tinha na rua ao lado estava sempre deserto, sem graça, portanto era o café mais vazio da cidade. Travava uma batalha no espaço-tempo para desvendar tudo que há dias me atordoava o juízo. A rua que abrigava o café tinha uma perspectiva longa, solitária; era praticamente habitada por um jovem rapaz negro, franzino, de seus vinte e poucos anos, que ficava agachado embaixo de uma árvore, com seu ar de tristeza, soltando bolhas de sabão e observando elas estourando no alto. Pode parecer irônico, mas apesar do café estar sempre vazio, era melhor do que o outro, o da misteriosa bebida escura. Pedi dois, assim que me sentei, mas não posso deixar de falar da senhora Afonsa. Passava o dia inteiro atrás do balcão, se abanando com uma tampa velha de uma caixa de sapato, e movia-se apenas para espantar pernilongos.

– Obrigado, senhora. Disse.

Meu interesse por dona Afonsa, confesso, era clínico. Ela insistia em manter um café numa casa velha, toda preta por fora, e com uma árvore quase deitada na frente sufocando a ventilação. Todas as casas tinham uma placa escrito “aluga-se”, sem contar um posto caindo aos pedaços, com gasolina falsificada.

dois

In JoséEduardoCarvalho on 14/06/2009 at 8:51 AM
 Cafe Terrace On The Place, de Vincent van Gogh.

Cafe Terrace On The Place, de Vincent Van Gogh.

Tentei encontrar maneiras de enganar o sono. Cada vez mais acreditava que uma vida sem emoções, estruturada na razão, não teria sentido algum pra mim.  Não queria dinheiro, luxo, fama, trabalho, amores, sexo, queria a verdade, nada mais. De repente, me deparei novamente na Praça XV, mas dessa vez já sabia a janela que correspondia ao quarto do meu analista. E lá estava ele reclinado em várias almofadas arredondadas, todas cobertas de renda, com olhos transbordando vida, delicadeza, malícia. Um gato preto, de traços peculiares, alinhara-se entre suas pernas, como se fosse uma posição indiscutível de conforto. No entanto, nem o gato nem o seu dono chamavam mais a minha atenção naquele quarto. Totalmente enfeitiçado por inúmeras mandalas penduradas na janela, que me remetiam a fragmentos de sonhos, nada mais desviava o meu olhar. Finalmente, o analista disse:

– Vejo que as mandalas te interessam.

– Sim, respondi.

Depois de tanto olhar, tudo decaiu e acabou.

– Que pensamentos elas provocam em você? O que surge em sua mente?

Perguntou o analista.

– Não sei bem, gosto das cores, da textura. Gosto da obra. Acho alegre e serena, disse.

Fiquei mexendo a mandala para lá e para cá, contra a luz suave, avermelhada. Mas não tão ágil quanto o meu analista, que pegou uma das mandalas para me presentear. Atormentado pelas contradições da razão, questionei o motivo de tal ato.

– Meu caro, não há motivo para dar de presente um objeto que não vejo valor, disse o analista.

Talvez fosse o momento de rever o valor que eu atribuía às coisas de minha vida. Não precisava ser tão solitário assim. Muitos menos ser fiel a minha rotina noturna. Entendia como uma saída – ou melhor dizendo, fuga ­ – para todos os meus desapontamentos que julgava demasiadamente cruéis. Por isso, no inverno daquele ano, resolvi dar notícias como gesto de generosidade aos meus parentes. Dificilmente comia mais de uma vez por dia, em geral, depois de vagar pela cidade. Costumava freqüentar o café que era o point da cidade, servia uma bebida amarga e escura, com gosto de terra, com mini-sonhos de doce-de-leite deliciosamente macios e recheados. Descobrira o lugar assim que cheguei à cidade, há um ano, e me tornará amigo do dono.  Todas as manhãs, quando devorava a suposta bebida escura com sonho, ele brincava, dizendo:

– Ei, garoto com cara de homem, assim você não vai manter o peso.

Meses antes sentar-me ali, como de costume, conheci um senhor muito interessante. Na verdade, uma entidade ancestral espiritual que muito me disse sobre os mistérios da vida e da natureza. Baixinho, magro, com poucos cabelos grisalhos sobre o rosto e traços de uma vida marcada pela luta, ouvi as histórias mais extraordinárias de minha vida. Quando ele começou a falar, desconfiei que estava sonhando com vidas passadas.

um

In JoséEduardoCarvalho on 14/06/2009 at 4:55 AM
O Grito, do pintor expressionista norueguês, Edvard Munch.

O Grito, do pintor expressionista norueguês, Edvard Munch.

As paredes me sufocavam, tinha sonhos sombrios naquele lugar. O quarto alugado na Rua Piracuama era minúsculo, quente e barulhento, tinha um estabelecimento comercial, no piso inferior, e um barulho constante de liquidificador ligado. Os funcionários da padaria chegavam às quatro e meia da manhã e tomavam café de luz acesa. Quando o sol despontava no céu, eles já estavam atendendo normalmente os clientes, com a maioria dos alimentos fresquinhos, pronto para serem devorados por almas famintas. Não me lembro um dia que não tenha presenciado isso acontecer, fora aqueles que não estava no quarto. Mesmo assim, nesse horário, conseguia imaginar a situação. Numa noite de agosto gelada eu estava longe de casa, caminhando pela noite profunda, muito escura, num rumo que não sabia onde iria dar. Percebi que a comunicação flui melhor à noite, como a febre que vez ou outra aparece quando escurece. A algazarra dos turistas que sempre circulavam em grandes grupos pelo bairro e o uísque que pelo horário eu deduzia que já estava em altas dosagens na cabeça dos jovens da Rua Augusta, garantiam uma bagunça infinita até o sol aparecer. Com um sorriso de canto de boca, daqueles esboçados forçadamente, sem nenhuma naturalidade, cumprimentei a pessoa ao meu lado. Era o bastante, pensei. Estava tão perdido em meus pensamentos, que só queria um pouco de privacidade, o que obviamente não poderia ter, pois estava em um ponto de ônibus. E sozinho.

– Não é possível, andei tanto a procura de lugar nenhum e ainda me aparece uma pessoa, pensei.

Nem sabia ao certo que ônibus deveria pegar e muito menos para onde ir. Na verdade, não tinha para onde ir. A pessoa ao lado, sentada no banco, parecia querer dizer algo. Talvez um suspeitasse do outro, mas isso não vinha ao caso, não havia tempo para dúvidas. Melhor tudo continuar como estava. O conflito não era físico, era psicológico. Pensamentos iam e vinham, assim como os inúmeros ônibus que passavam diante de mim. Dizia ser ateu, mas diante de tanto sofrimento, meu coração acreditava que um milagre alteraria positivamente a ordem natural da minha vida vida. Mas nada acontecia. Achava estar fugindo de gente que não conseguia controlar a própria loucura, mas lá no fundo meu ego gritava que eu estava fugindo de mim mesmo. Uma outra linguagem, uma outra ideologia espiritual secreta, crescia dentro de mim, tomando conta dos meus sonhos noturnos. De repente, quando me dei conta, estava parado na Av. Paulo VI, observando as janelas do Rotary Palace, e imaginando qual delas correspondia ao apartamento do meu analista. Entrei em um quarto qualquer, fiquei atônito. O homem aparentava ter uns 45 anos, cabelo preto, um pouco azulado, olhos puxados, pele morena, lábios um pouco grossos… Era ele. O analista. Uma espécie de índio peruano. Talvez daí a sua sabedoria. Seu quarto espelhava o luxo escondido cheio de obras mundanas. Parede de veludo vermelho e uma luz suave, aconchegante, proveniente de luminárias revestidas de sedas rosadas. Em meu nariz penetrava um perfume cítrico, combinação de laranja e limão que pairava no ar formando uma transparente névoa esbranquiçada. Timidez, ansiedade, nervosismo, não sei o que ocorreu, mas não consegui falar coisa com coisa e fui embora correndo daquele lugar. O frio era insuportável, mas eu não sentia nada por causa do fogo que me aquecia internamente. Na volta para casa, me perdi, andei em círculos a noite inteira a procura da lucidez escondida em minha mente. O tempo passava rápido, muito rápido. Já eram quatro horas da manhã. Resolvi sair andando, rumo ao desconhecido – como de costume – mas em largos passos, com pressa. O olho do sol começava a me seguir na cama. Já conseguia sentir o cheiro de café fresco e pão queimado que vinha da padaria.

a vida em espiral

In JoséEduardoCarvalho on 14/06/2009 at 4:46 AM

A vida em espiral é um blog literário, de ficção e não-ficção, de idéias completas e/ou inacabadas, de contos e en(contros) do autor com a sua imaginação. Ao mesmo tempo, uma observação cotidiana do universo ao seu redor, mistura-se com viagens da inteligência literária imaginativa. Sem prentensões ou ambições literárias, o blog é apenas uma aventura no universo das letras para exercitar a escrita.

Cachoeira do Buração, em Ibicoara, na Chapada Diamantina, Bahia. Pedras formam um camino no formato espiral.

Cachoeira do Buração, em Ibicoara, na Chapada Diamantina, Bahia. Pedras formam um camino no formato espiral.