José Eduardo Carvalho

um

In JoséEduardoCarvalho on 14/06/2009 at 4:55 AM
O Grito, do pintor expressionista norueguês, Edvard Munch.

O Grito, do pintor expressionista norueguês, Edvard Munch.

As paredes me sufocavam, tinha sonhos sombrios naquele lugar. O quarto alugado na Rua Piracuama era minúsculo, quente e barulhento, tinha um estabelecimento comercial, no piso inferior, e um barulho constante de liquidificador ligado. Os funcionários da padaria chegavam às quatro e meia da manhã e tomavam café de luz acesa. Quando o sol despontava no céu, eles já estavam atendendo normalmente os clientes, com a maioria dos alimentos fresquinhos, pronto para serem devorados por almas famintas. Não me lembro um dia que não tenha presenciado isso acontecer, fora aqueles que não estava no quarto. Mesmo assim, nesse horário, conseguia imaginar a situação. Numa noite de agosto gelada eu estava longe de casa, caminhando pela noite profunda, muito escura, num rumo que não sabia onde iria dar. Percebi que a comunicação flui melhor à noite, como a febre que vez ou outra aparece quando escurece. A algazarra dos turistas que sempre circulavam em grandes grupos pelo bairro e o uísque que pelo horário eu deduzia que já estava em altas dosagens na cabeça dos jovens da Rua Augusta, garantiam uma bagunça infinita até o sol aparecer. Com um sorriso de canto de boca, daqueles esboçados forçadamente, sem nenhuma naturalidade, cumprimentei a pessoa ao meu lado. Era o bastante, pensei. Estava tão perdido em meus pensamentos, que só queria um pouco de privacidade, o que obviamente não poderia ter, pois estava em um ponto de ônibus. E sozinho.

– Não é possível, andei tanto a procura de lugar nenhum e ainda me aparece uma pessoa, pensei.

Nem sabia ao certo que ônibus deveria pegar e muito menos para onde ir. Na verdade, não tinha para onde ir. A pessoa ao lado, sentada no banco, parecia querer dizer algo. Talvez um suspeitasse do outro, mas isso não vinha ao caso, não havia tempo para dúvidas. Melhor tudo continuar como estava. O conflito não era físico, era psicológico. Pensamentos iam e vinham, assim como os inúmeros ônibus que passavam diante de mim. Dizia ser ateu, mas diante de tanto sofrimento, meu coração acreditava que um milagre alteraria positivamente a ordem natural da minha vida vida. Mas nada acontecia. Achava estar fugindo de gente que não conseguia controlar a própria loucura, mas lá no fundo meu ego gritava que eu estava fugindo de mim mesmo. Uma outra linguagem, uma outra ideologia espiritual secreta, crescia dentro de mim, tomando conta dos meus sonhos noturnos. De repente, quando me dei conta, estava parado na Av. Paulo VI, observando as janelas do Rotary Palace, e imaginando qual delas correspondia ao apartamento do meu analista. Entrei em um quarto qualquer, fiquei atônito. O homem aparentava ter uns 45 anos, cabelo preto, um pouco azulado, olhos puxados, pele morena, lábios um pouco grossos… Era ele. O analista. Uma espécie de índio peruano. Talvez daí a sua sabedoria. Seu quarto espelhava o luxo escondido cheio de obras mundanas. Parede de veludo vermelho e uma luz suave, aconchegante, proveniente de luminárias revestidas de sedas rosadas. Em meu nariz penetrava um perfume cítrico, combinação de laranja e limão que pairava no ar formando uma transparente névoa esbranquiçada. Timidez, ansiedade, nervosismo, não sei o que ocorreu, mas não consegui falar coisa com coisa e fui embora correndo daquele lugar. O frio era insuportável, mas eu não sentia nada por causa do fogo que me aquecia internamente. Na volta para casa, me perdi, andei em círculos a noite inteira a procura da lucidez escondida em minha mente. O tempo passava rápido, muito rápido. Já eram quatro horas da manhã. Resolvi sair andando, rumo ao desconhecido – como de costume – mas em largos passos, com pressa. O olho do sol começava a me seguir na cama. Já conseguia sentir o cheiro de café fresco e pão queimado que vinha da padaria.

  1. ZeDú, comecei pela direita, que nos dias de hoje, com o olho do sol me perseguindo, poderia se confundir com a esquerda. E gostei. Gostei do clima, da tensão, do recorte. Ficou muito bom. Evidente que, com o passar do tempo, muitos cafés e pães serão apreciados.

  2. Muito interessante o texto. Gosto de coisas assim, que instigam… Gostei da riqueza de detalhes também, acho que quase me senti como o rapaz do conto (risos).

Deixe um comentário